A Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB SP vem a público manifestar a sua discordância e preocupação quanto à relativização dos dispositivos legais que preveem o crime de estupro de vulnerável, contra crianças e adolescentes de até 14 anos de idade, em julgados recentes.
O legislador brasileiro, em 2009, alterou o Código Penal para passar a prever a conduta de estupro de vulnerável como um tipo penal específico. Isso significa que manter relações sexuais com pessoa com menos de 14 anos é tipificado pela lei penal brasileira como crime mais grave do que aquele cometido contra pessoas com mais de 14 anos.
A alteração legal também provocou mudanças nas regras de iniciativa para a propositura de ação penal pela prática de estupro de vulnerável: até 2009, quem praticasse estupro ou atentado violento ao pudor contra crianças e adolescentes com menos de 14 anos deveria ser denunciado por ação penal de iniciativa privada. Ou seja, caberia aos pais da criança ou adolescente vítima do crime realizar a denúncia, salvo na hipótese em que o denunciado fosse pai, padrasto, tutor ou curador da vítima ou houvesse situação de miserabilidade. Com a mudança da lei, a ação penal nesses casos passou a ser de iniciativa pública. Desta forma, a denúncia passou a depender exclusivamente do Ministério Público, independentemente da atuação de pais ou das circunstâncias do crime.
Apesar da referida lei ser clara, houve certa resistência de parte do Judiciário de reconhecer que a idade da vítima, desde 2009, é um critério objetivo para a caracterização do crime e, ao analisar casos concretos, certos julgados relativizavam essa presunção. Em resposta a esta postura, decisões do Superior Tribunal de Justiça, como as prolatadas nos REsp 953.805381e REsp 1.276.434382, ambos de 2014, reformaram sentenças que relativizavam a aplicação da lei e consolidaram o entendimento de que, tendo a vítima menos de 14 anos, a presunção de violência é absoluta, independentemente da criança ou adolescente já ter tido outras relações sexuais ou ter concordado com o ato.
Com efeito, em se tratando de recurso especial repetitivo, o STJ discutiu se a aquiescência da vítima com menos de 14 anos possui relevância jurídico-penal a afastar a tipicidade do crime previsto no art. 217-A do Código Penal, fixando a seguinte tese: “Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com criança ou adolescente com menos de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime” (Tema Repetitivo 918). Consequentemente, a Corte editou a Súmula 593 para reafirmar a previsão normativa de 2009: “O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.”.
Os dados do último levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública de casos notificados de estupro são estarrecedores e revelam o maior número de registros de estupro e estupro de vulnerável da história: em 2022 ocorreram, no Brasil, 56.820 estupros de vulneráveis, um aumento de 8,6% com relação ao ano anterior, sendo que 75,8% do total dos casos de estupro no Brasil tinha como vítima pessoas consideradas absolutamente incapazes de consentir, fosse pela idade (com menos de 14 anos) ou por qualquer outro motivo (deficiência, enfermidade etc.).
Além disso, vale destacar que, segundo a legislação brasileira, o casamento civil só é permitido, em regra, para as pessoas a partir de 18 anos de idade e, excepcionalmente, aos 16 e 17 anos caso a pessoa seja emancipada ou conte com autorização de ambos os pais, representantes legais ou, em substituição, judicial. A Lei n. 13.811/2019, suprimiu as hipóteses extraordinárias em que o casamento era permitido a menores de 16 anos.
Ainda assim, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Brasil é o quarto país do mundo com número de registros de casamento infantis: segundo o IBGE, por ano, 17 mil meninas de até 17 anos se casam no Brasil. Vale a ressalva de que esse número diz respeito a uniões que foram registradas em cartórios, de forma que não contabilizam as uniões informais.
Nesse contexto, com a Lei 11.106/2005, houve a revogação de trecho do Código Penal que previa o casamento como forma de extinguir a punição para casos de estupro. Tal dispositivo se relaciona com uma série de determinações legais machistas que tinham como preocupação central os “costumes”, mais do que a dignidade sexual e os direitos da mulher. É dizer, há muito essa causa de extinção da punibilidade foi extirpada do ordenamento jurídico brasileiro, por representar, especialmente, mais uma forma de violência patriarcal capaz de vulnerabilizar ainda mais as mulheres.
Complementando esse quadro de vulnerabilidade e violações de direitos, 1 a cada 7 bebês brasileiros é filho de mãe adolescente. Por dia, 1.043 adolescentes se tornam mães no Brasil. Por hora, são 44 bebês que nascem de mães crianças ou adolescentes, sendo que dessas 44, duas têm idade entre 10 e 14 anos, ou seja, vítimas de estupro de vulnerável.
Os números revelam uma situação muito grave, que tem como base a desigualdade de gênero e um olhar adultocêntrico que percebe crianças e adolescentes meramente como objetos e não sujeitos de direitos. Nesses casos, seja de casamento infantil e/ou de gravidez precoce, as consequências mais recorrentes para as meninas são a evasão escolar, a dependência financeira e emocional do parceiro, violência doméstica, dificuldade de inserção no mercado de trabalho, realização de trabalhos informais e precarizados, entre outros. Também é sabido que as desigualdades em suas múltiplas dimensões (renda, gênero, idade, raça, etnia, deficiência, território e educação), tendem a se aprofundar e se consolidar ao longo da vida. Segundo estudo do Núcleo de Violência da Universidade de São Paulo, adolescentes grávidas formam um dos maiores grupos de risco de vitimização violenta e de terem seus direitos violados.
Como elemento estruturante da sociedade brasileira, o machismo manifesta-se tanto no ordenamento jurídico como na jurisprudência, especialmente a partir de manobras argumentativas para justificar o injustificável. Assim, a recorrência, no sistema judiciário, de casos que relativizam a violência presumida e promovem o abrandamento ou a isenção de penas para o crime de estupro de vulnerável podem fazer com que essas condutas sejam ainda mais relativizadas na sociedade brasileira, em que vigora uma cultura permissiva e já muito violenta com as crianças e adolescentes, especialmente meninas.
Por fim, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, determina que o dever de zelar pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes é uma responsabilidade compartilhada entre Estado, família e sociedade. Ou seja, é um dever de todos. No caso de operadores do Direito, essa responsabilidade é ainda mais importante, no sentido de garantir a aplicação da lei em conformidade com o arcabouço de proteção integral à infância e adolescência em vigor no Brasil.
Diante desse quadro perverso, muito nos surpreende a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça que absolveu da prática criminosa homem de 20 anos que teve relações sexuais com uma menina de 12 anos. Esta é uma mensagem perigosa que o Poder Judiciário envia para a sociedade brasileira e que merece o repúdio da OAB SP.
São Paulo, 18 de março de 2024
Isabella Henriques
Presidente da Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
Ana Claudia Cifali e Luciana Temer
Membras da Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente