Se o Brasil vive em um Estado Democrático de Direito, como se costuma dizer, além de manter ativo seu sistema de leis resguardado pela Constituição Federal, é preciso que as autoridades cumpram na prática o que está na legislação, sempre em favor do interesse público e do bem-estar social.
Acontece que vivemos sob o risco de nos tornarmos um Estado Democrático meramente de aparência, já que valiosas conquistas sociais estão sendo ignoradas ou acessadas apenas de forma parcial, exsurgindo ações deletérias de distinção, não raramente, balizadas apenas em cor, gênero, religião, nível social, interesse econômico e ideologia política.
Episódios recentes revelam a gravidade dessas violações: um pacote de reformas penais tentou, recentemente, institucionalizar a gravação de conversas entre Advogados e clientes. A prática, ilegal, é cada vez mais comum em nosso país.
O fim do sigilo da relação profissional entre Advogados e clientes elimina um direito constitucional que é a defesa de todo e qualquer cidadão. Sem ele, a população se torna ainda mais vulnerável, a Democracia se enfraquece e o interesse público deixa de ser a busca prioritária dos nossos governantes.
Na ânsia de julgar antecipadamente, de manipular as responsabilidades e de agir conforme seus interesses, inúmeras esferas do Poder Público atentam contra a Democracia impedindo, especialmente Advogados e Jornalistas, de atuarem com liberdade. Também não são poucos os casos de Jornalistas que acumulam ações penais, civis e administrativas por não divulgar suas fontes, especialmente quando as informações coletadas dizem respeito a grupos influentes ou esferas do poder. A quebra de sigilo da fonte é uma afronta ao direito profissional que está garantido pelo artigo 5º da Constituição Federal em proteção do cidadão.
O resguardo da fonte não é uma invenção brasileira. Tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos, reafirmam essa premissa. Não há garantia de informação verdadeira e de credibilidade se não houver respeito integral ao sigilo da fonte. Chegamos a um ponto crucial da nossa história que demanda resposta firme a uma indagação: queremos uma Democracia de faz de conta ou queremos uma Democracia Constitucional verdadeira que, ao mesmo passo que respeite e legitime a vontade popular da maioria episódica em determinado momento social, não se descure das conquistas civilizatórias da humanidade?
É evidente que todos aqueles que estão de boa-fé e cônscios dos seus compromissos sociais e públicos devem dar resposta positiva à segunda parte da indagação acima; afinal de contas, já assistimos a inúmeros exemplos da bancarrota de muitas Nações que se afundaram em retrocessos ao pretenderem seguir o caminho sem volta da Democracia que despreza as conquistas civilizatórias da humanidade, e pretende se sustentar apenas e tão somente na vontade popular episódica da maioria.
É exatamente nesta esteira que se encontram as premissas dos sigilos da fonte para o Jornalista e da relação entre Advogado e cliente para a Advocacia, por evidentemente constituírem eles, os sigilos, conquistas civilizatórias da humanidade que põem freios aos arroubos das vaidades dos comandantes de plantão que pretendem impor a todos nós a sua régua de conduta, pouco importando as vontades do cidadão que encontrem respaldo na vigente ordem constitucional.
O sigilo da fonte permite ao Jornalista ter acesso a informações que jamais seriam apresentadas se não fosse o dever ético-profissional dele de preservar a fonte, justamente porque o exercício do poder sobre as pessoas implica no ocultamento das informações das quais tem conhecimento determinada pessoa pelo óbvio medo da represália que a força imediata do comandante de plantão tem sobre os cidadãos. Serve ele, o sigilo da fonte, ao asseguramento da garantia do direito que todo cidadão tem de fazer o juízo de valor que bem entender sobre os fatos verdadeiros que venham a ser apresentados pelos Jornalistas, permitindo até mesmo que cada um de nós faça o seu juízo moral sem qualquer manipulação.
Já o sigilo da relação profissional entre Advogado e cliente tem como objetivo impedir que o ato de força comum a quem tem poder – seja ele de qualquer espécie: de mando, econômico etc. – anule o direito de defesa que é premissa básica da construção de uma Democracia, notadamente a Democracia Constitucional. Defender não pode ser um faz de conta a permitir que a verdade seja aquela pretendida por quem tem poder. A verdade há de ser buscada pela senda da razão e não por meio da construção de regras que coloquem a todos sob suspeita. O verdadeiro exercício do direito de defesa, sem combinações prévias pelos atores responsáveis pela punição daqueles que se desviam dos caminhos da lei e da ordem constitucional vigente, é que proporciona a realização do juízo livre e consciente de legalidade pelas autoridades sem comprometimento indevido com as vontades dos que tem poder.
Com a devida vênia, a bem da sobrevivência da segurança jurídica e da Democracia Constitucional, não há argumentos que justifiquem a violação dos sigilos em estudo. A coação se dá pelo poder e pela força política, na maioria das vezes. É preciso entender que atacar a liberdade profissional, uma prática cada vez mais comum no nosso país, é o mesmo que atacar a Democracia Constitucional brasileira.
Sob argumentos falsos, autoridades acusam Jornalistas e Advogados de gozar de privilégios e de agir em benefício próprio. Ora, a Justiça tem instrumentos jurídicos suficientes para punir o Jornalista que divulgar notícia falsa. Da mesma forma, pode condenar o Advogado que burlar prerrogativas legais para beneficiar a si mesmo ou ao seu cliente.
As últimas décadas da história mostram que Democracia forte só se constrói com Imprensa Livre e Advogados atuantes. Em outras palavras, não é possível resguardar os direitos de cidadania sem assegurar-se a liberdade profissional aos Jornalistas e à Advocacia.
É chegada a hora de Advogados e Jornalistas ficarem absolutamente atentos. É preciso ter a consciência de que somos um termômetro direto do Estado Democrático de Direito e que juntos temos a obrigação e o dever de proteger o cidadão das vontades autoritárias de quem quer que seja.
Unidos pelos preceitos democráticos e conectados pelo bem-estar coletivo e, bem assim, com coragem para expor notícias e verdades, juntos certamente faremos com que o cidadão seja respeitado como a maior autoridade de todas em um Estado Democrático de Direito.
A boa notícia é que existem inúmeros mecanismos para refazer os caminhos e recuperar conquistas constitucionais que vêm sendo ignoradas. Afinal, o que está em jogo, em última instância, é o direito de defesa do cidadão e o livre acesso aos dados de interesse público, conquistas civilizatórias da humanidade que dizem respeito a toda a sociedade.
Caio Augusto Silva dos Santos
Presidente da OAB SP