
Sob o princípio da centralidade do magistrado na supervisão do uso da Inteligência Artificial (IA) no Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, na última terça-feira (18), a minuta de regulamentação do uso da IA nos tribunais. O texto aprovado é resultado de um ano de estudos realizados por um grupo de trabalho formado por magistrados, servidores do Ministério Público (MP), da Defensoria Pública, membros ligados à academia da advocacia e a própria OAB SP (Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo).
Presidente da Comissão de Tecnologia e Inovação da Ordem paulista, Alexandre Zavaglia integra o grupo como especialista fora do Judiciário. Ele destaca que a regulamentação do uso de IA no Judiciário é um processo de transformação digital que vem acontecendo nos últimos 20 anos. “Desde a criação dos sistemas de processo eletrônico, passando pela digitalização dos autos e organização dos dados, até termos o ambiente adequado para o avanço do uso de IA. O que ganhamos é a transparência em relação aos projetos em andamento no Judiciário, sobre as formas de uso e os níveis de risco, sobre como e em que condições pode ser utilizada, e como garantir o seu uso ético e responsável”, aponta o especialista.
Zavaglia pondera, no entanto, que não basta criar uma regulamentação, mas é preciso acompanhar de perto, discutir boas práticas e formas de acompanhamento. “Para isso, a Resolução instituiu o Comitê Nacional de Inteligência Artificial do Judiciário para monitorar os projetos e garantir o cumprimento dessas orientações de governança e gestão de riscos, que contempla a participação efetiva da advocacia entre seus membros. Então, essa Resolução é um passo importante, mas o trabalho só está começando, e só a construção desse ambiente colaborativo vai permitir os ajustes, melhorias e o cumprimento dessas orientações”, frisa.
Confira, abaixo, a entrevista completa com o presidente da Comissão de Tecnologia e Inovação da OAB SP.
Jornal da Advocacia: O que efetivamente muda com a aprovação do ato normativo que regula o uso de IA no judiciário?
Alexandre Zavaglia: Esse é um processo de transformação digital do nosso Judiciário, que vem acontecendo nos últimos 20 anos. Desde a criação dos sistemas de processo eletrônico, passando pela digitalização dos autos e organização dos dados, até termos o ambiente adequado para o avanço do uso de IA. O que ganhamos é a transparência em relação aos projetos em andamento no Judiciário, sobre as formas de uso e os níveis de risco, sobre como e em que condições pode ser utilizada, e como garantir o seu uso ético e responsável. A construção dessa Resolução foi um processo que demonstrou a colaboração entre os diversos setores, ao longo de um ano, com importante atuação da advocacia. Tudo isso mostra que o objetivo não é substituir o magistrado, mas utilizar a tecnologia a favor do acesso à Justiça, da celeridade e a qualidade na prestação de serviços jurisdicionais, e do respeito ao devido processo legal. Mas, é claro que existem muitos problemas, na prática, e a Resolução aprovada pelo CNJ tem o objetivo de estabelecer a governança, a auditoria, o monitoramento e o uso responsável da IA no âmbito do Poder Judiciário, para promover a inovação tecnológica e a eficiência dos serviços judiciários de modo seguro, transparente, isonômico, com a observância de seus direitos fundamentais.
JA: Quais são as normativas que garantem que os juízes não usarão a IA como uma ferramenta decisória?
Alexandre Zavaglia: O ponto principal é que o CNJ não está regulando a IA, mas regulamentando as regras de governança para o seu uso ético e responsável no Judiciário, harmonizando essas iniciativas com a nossa legislação. O artigo 5º, XXXV da Constituição, por exemplo, garante o acesso ao Judiciário e ressalta que a tomada de decisão é prerrogativa exclusiva do juiz, e o LIII que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. O Código de Processo Civil (art. 371) estipula que os juízes devem avaliar livremente as provas e fornecer fundamentação detalhada em seus julgamentos, e o Código de Processo Penal (art. 155), dispõe que a convicção do juiz deve ser baseada na livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial. O trabalho do CNJ, por meio do Grupo de Trabalho nomeado pelo ministro Luís Roberto Barroso e coordenado pelo conselheiro Luís Fernando Bandeira de Melo e pelo ministro do STJ Ricardo Villas Boas Cueva, com a participação de diversos especialistas nomeados, também contou com a participação de toda a comunidade jurídica. Isso foi possível por meio de audiências públicas e sugestões por escrito, para adequar esse uso a essas normas legais, inclusive, com as discussões do nosso Marco Regulatório da IA (PL. 2338/23), em tramitação no Congresso Nacional. Então, já temos uma base legal na CF e nos códigos de processo, que essa resolução busca incorporar nessas práticas.
JA: Para a advocacia, qual é a importância de ter o uso de IA regulamentado no Judiciário?
Alexandre Zavaglia: A formalização de diretrizes que colocam o juiz como único responsável pelas decisões, pela valoração das provas, e que garantem também o respeito às prerrogativas dos advogados, o direito das partes e o devido processo legal. Mas, não basta criar uma regulamentação, é preciso acompanhar de perto, discutir boas práticas e formas de acompanhamento. Para isso, a Resolução instituiu o Comitê Nacional de Inteligência Artificial do Judiciário para monitorar os projetos e garantir o cumprimento dessas orientações de governança e gestão de riscos, que contempla a participação efetiva da advocacia entre seus membros. Inclusive, o texto final incorporou alguns instrumentos que garantem a participação da OAB nesse processo, como no acesso às auditorias de sistemas (art. 12, VIII), às avaliações de impacto e o direito de peticionar ao Comitê (art. 5º § 3º) solicitando a auditoria dos sistemas e outras formas de controle. Por tudo isso, essa Resolução é um passo importante, mas o trabalho só está começando, e só a construção desse ambiente colaborativo vai permitir os ajustes, melhorias e o cumprimento dessas orientações. A tecnologia é muito nova, complexa e em desenvolvimento, com novidades a cada dia, o que mostra que tudo isso deve ser contínuo, com estruturas capazes de permitir esse diálogo e a implementação desses conceitos.
JA: Os cidadãos saberão quando o caso terá uso da IA no processo?
Alexandre Zavaglia: Cada tribunal deve informar as formas de uso em suas políticas internas, tornando essas informações acessíveis a toda a sociedade e deve publicar seus projetos na plataforma SINAPSES do CNJ. O que se busca é que não queremos juízes robôs, mas juízes que se utilizam da tecnologia para apoiar sua atividade, com a supervisão em todas as etapas. É isso que devemos monitorar. Também é importante entender que não existe uma IA, mas várias técnicas e tipos diferentes para a leitura e classificação de documentos, para melhorar a consulta de jurisprudência, para gerar minutas que devem respeitar o perfil decisório de cada magistrado. E tudo estará presente, de modo geral, em todas as atividades, nas diferentes etapas. Não se trata só de saber quando será usado, porque a busca de jurisprudência com IA, por exemplo, estará presente em todos os casos, mas de garantir que a decisão final é do juiz, e quais foram os cuidados para garantir que isso aconteça, em cada uma dessas etapas de desenvolvimento e uso.
JA: A regulamentação da IA pelos magistrados pode gerar um uso massivo da ferramenta no Judiciário? Isso apresenta algum risco para a advocacia e para a sociedade?
Alexandre Zavaglia: O uso de IA é uma realidade na área jurídica, não só no Judiciário, como também na advocacia, no Ministério Público, na Defensoria Pública, e em muitos outros órgãos que fazem parte do Sistema de Justiça. E o Brasil, com mais de 80 milhões de processos em andamento, é um dos casos mais importantes de uso de IA no mundo. Como temos acompanhado, essa inovação tem nos ajudado a classificar milhares de informações de processos judiciais, contratos, entre outros documentos jurídicos, como permitido o apoio em atividades do nosso dia a dia, no suporte à decisão com informações mais qualificadas e até para a sugestão de minutas. Tudo isso pode ser positivo ou negativo, dependendo da forma como utilizamos. Por isso, precisamos investir em educação e formação para compreender os limites e riscos dessa tecnologia e como aplicá-la da forma correta, colocando sempre as pessoas e o Direito no centro. E essa regulamentação caminha nesse sentido. O caminho é longo e estamos só começando.